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  • José Miquéias

A justiça do trabalho sob assédio moral: um caso de vida ou morte.

A Justiça do Trabalho pode ser percebida, nos dias atuais, como vítima de assédio moral. Buscando-se o conceito técnico de assédio moral, a partir da constatação dos elementos definidores do fenômeno, veremos que a ideia pode ser transportada e aplicada à situação atualmente vivida pela instituição.


Marie-France Hirigoyen, psiquiatra e psicanalista francesa, talvez a maior especialista na matéria no mundo, descreveu o assédio moral como “toda conduta abusiva que se manifesta notadamente por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos, que possam atingir a personalidade, a dignidade ou a integridade física ou psíquica de uma pessoa”. É uma série de comportamentos e atitudes perversas com o fim de atingir determinado objetivo.


O assédio se inicia de maneira anódina e se propaga insidiosamente. Em um primeiro momento, as pessoas envolvidas na agressão não querem formalizar o ataque e realizam leves estocadas e medidas vexatórias. Em seguida os ataques se multiplicam e a vítima é regularmente acuada, colocada em estado de inferioridade, submissa a manobras hostis e degradantes por um longo período.


A autora indica também comportamentos, dentre outros, pelos quais pode ser considerada uma pessoa (ou uma instituição, no caso) assediada: constrangimento, desqualificação, descrédito, isolamento, divisão e desestabilização pelo uso do paradoxo. Senão vejamos a presença de todos esses elementos.


O caso do corte nas verbas da Justiça do Trabalho ocorrido na votação pelo Congresso Nacional da Lei Orçamentária de 2016 (Lei nº 13.255/2016) é exemplar do assédio moral sofrido pela Justiça do Trabalho. A diminuição em 90% nas despesas de investimento e 29,4% nas de custeio impõe de forma constrangedora a redução nas atividades normais da Justiça do Trabalho, impedindo-a, por meios transversos, de realizar sua missão.


O discurso do relator do orçamento é recheado de elementos de desqualificação da Justiça do Trabalho, ora afirmando que ela é parcial,[1] ora acusando que o Juiz trabalhista só quer despachar os demandantes.[2] Tenta desacreditar a Justiça do Trabalho, alegando que esse ramo do Judiciário não tem condições de dar conta de todas as ações ajuizadas[3]. Como afirma Hirigoyen, “para afundar o outro, ridiculariza-o, humilha-o, cobre-o de sarcasmos até que ele perde a confiança em si mesmo.”


O isolamento é realizado quebrando-se as alianças possíveis. A tática mais utilizada é o da divisão, tão antiga que vem descrita na obra “A arte da guerra”, de Sun Tzu, do século V antes de Cristo. O editorial do Jornal “O Estado de São Paulo”, do dia 17 de maio de 2016, é bem claro no intuito de dividir. Após falar da crise econômica e do aumento do número de ações, afirma que “muitos juízes trabalhistas alegam que não têm condições de dar conta do aumento do número de novos processos”, e que, “apesar de o Executivo já ter comunicado que não há dinheiro, eles pedem mais recursos para a Justiça do Trabalho, que já gasta 93,5% de pagamento.” Depois contrapõe: “Outros magistrados têm surpreendido pela sensatez e pelo realismo, entendendo que nas crises econômicas é preciso estimular o Congresso a aprovar reformas legislativas a preservar empregos, e não multiplicar direitos trabalhistas, o que penalizaria as empresas num contexto de retração do mercado”. Assim, colocam em lado opostos os juízes do trabalho insensatos e irrealistas, que querem a manutenção do bom funcionamento do Poder Judiciário Trabalhista, e os sensatos e realistas, que querem restringir o Direito do Trabalho e “autolimitar” a Justiça especializada.


A técnica do uso do paradoxo também está presente na “Arte da Guerra” de Sun Tszu. Segundo Hirigoyen, “o discurso paradoxal é composto de uma mensagem explícita e de um subentendido, que é negado pelo agressor.”


No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5468, proposta pela ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), que questionava os cortes no orçamento daquele ramo do Judiciário na Lei Orçamentária Anual (Lei 13.255/2016), o discurso do relator Ministro Luiz Fux, ao final vencedor por sete votos a três, traz bem o discurso paradoxal: disse votar “lamentavelmente” pela improcedência da ação, ressaltando a importância da Justiça do Trabalho, mas que “a Constituição Federal confere inequivocamente ao Legislativo a titularidade e a legitimidade institucional para debater a proposta orçamentária consolidada pelo chefe do Executivo.” Destacou o relator que embora “ostente confessadamente uma motivação ideologicamente enviesada”, a fundamentação do relatório final da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização não vincula os parlamentares, que votam o orçamento em sessão conjunta das duas Casas Legislativas, não sendo “possível presumir que as razões para a redução tenham sido as do relatório.” Trouxe ainda que a elaboração do orçamento depende intimamente do contexto socioeconômico do país, e que o impacto não se concentrou apenas na Justiça do Trabalho ou no Judiciário, “ainda que tenham sido mais expressivas nesse ramo”. O discurso, apesar de reconhecer o ataque à Justiça do Trabalho, joga no subtexto que assim deseja o Poder Legislativo e o contexto socioeconômico no país.


A tese que a Corte Suprema firmou a partir desse julgamento é a cabal prova do paradoxo, ao negar o caráter de gravidade e excepcionalidade do corte: “Salvo em situações graves e excepcionais, não cabe ao Poder Judiciário, sob pena de violação ao princípio da separação de Poderes, interferir na função do Poder Legislativo de definir receitas e despesas da Administração Pública, emendando projetos de leis orçamentárias, quando atendidas as condições previstas no artigo 166, parágrafos 3º e 4º, da Constituição Federal”. Ao negar a gravidade a esse corte orçamentário, que ameaça o funcionamento de um ramo do Poder Judiciário, toma-o, no plano do subentendido, como banal, sem importância. Segundo Hirigoyen, a finalidade de tudo isso é de controlar os sentimentos e os comportamento do outro e mesmo de fazer que ele acabe por concordar e se desqualificar a si mesmo, no objetivo de assumir posição dominante.

Aumenta-se o paradoxo com a decisão liminar do mesmo Ministro Luiz Fux na Ação Direta de Constitucionalidade nº 4598 no sentido de que os Tribunais Regionais do Trabalho, mesmo com o corte, mantenham seus horários de funcionamento. A redução de horários foi uma das formas encontradas pela Justiça do Trabalho para tentar caber no encolhimento do orçamento, tendo alguns tribunais obtido sucesso com a medida, realizando economia de até 49,61%, tendo o engenheiro servidor do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região comparado o esforço e o resultado com as “reduções obtidas em economia de guerra”.


As consequências para uma pessoa (ou instituição) assediada são nefastas.


A primeira delas seria a confusão. As pessoas ficam como anestesiados, reclamam que têm a cabeça vazia e com dificuldades de pensar, descrevendo como um verdadeiro empobrecimento de suas faculdades, uma amputação daquilo que tinham de mais vivo e espontâneo. Mesmo se eles têm às vezes um sentimento de injustiça, sua confusão é tal que não há qualquer meio de reagir. E os juízes podem, com isso, passar a julgar contra os trabalhadores, às vezes deixando a lei de lado, por achar que a “rigidez” da lei deva justamente ser compensada, flexibilizada. Os Juízes do Trabalho podem achar que realmente empregados e empregadores encontram-se em pé de igualdade, e que a disputa no campo processual trabalhista em nada se diferencia daquele realizado, por exemplo, entre duas empresas na esfera cível. Podem forçar conciliações que se mostram patentemente injustas para o trabalhador para parecerem “equilibrados” aos olhos dos assediadores.


Obviamente que em vão. Os maiores críticos da Justiça do Trabalho, José Pastore e José Márcio Camargo, sempre contatados pela Mídia para atacar o Direito do Trabalho, afirmam que a abertura para a conciliação e “a possibilidade de negociar valores menores na hora da demissão” desestimulam o pagamento dos direitos trabalhistas por um lado e, por outro, os investimentos no treinamento de trabalhadores. Afirma Camargo que “numa negociação na Justiça, um juiz afirmou certa vez que era melhor um mau acordo que uma boa briga. O incentivo para o empresário é não pagar. E, para o trabalhador, é querer ser demitido para receber o que não é pago. Há um incentivo para a rotatividade.”


Outra consequência é o medo. Passando a temer a reação dos agressores e do entorno, as vítimas do assédio moral traçam estratégias de sobrevivência. “Para escapar a esta violência, elas tendem a ser mais e mais gentis, mais e mais conciliantes. Elas têm a ilusão que esse ódio poderia se dissolver no amor e na cordialidade.” Pode a Justiça do Trabalho buscar soluções alternativas que rejeitam o pressuposto de disparidade de forças, como a mediação e outras formas compulsórias de conciliação. Podem tentar ser gentis com os agressores, e esquecerem que conciliação forçada não é solução de conflito, mas violência repressora. Assumem então como seus esses projetos que a descaracterizam, passando a servir de meio para a redução da lei material.


Pode, então, no final de tudo, a Justiça do Trabalho vir a aceitar o comando[4] e pedir que se dê fim a esse sofrimento, que se alterem as leis trabalhistas,[5] que se retirem direitos sociais, que se modifiquem institutos centenários que não são exclusivos da Justiça do Trabalho, mas que “penalizam” demasiadamente as empresas, como a revelia e a prescrição.[6] Nas relações de trabalho e afeto essa é uma das consequências mais comuns do assédio moral: o assediado simplesmente desistir, “pedir para sair”.


Assim, de repente, a Justiça do Trabalho se veria totalmente desvirtuada; mais ainda, perceber-se-ia negada em sua natureza, sem razão de existir. Teria cometido suicídio, como aconteceu com vinte e dois trabalhadores da France Telecom-Orange entre os anos de 2008 e 2009, consequência do assédio moral organizado pelos dirigentes da empresa, segundo o Ministério Público francês. A Justiça do Trabalho teria assim perdido sua razão de ser, não encontrando mais sentido na sua existência.


Não haveria, então, muitas lágrimas em seu funeral; aqueles que a compreendiam, a buscavam e a admiravam tinham se afastado, e aqueles que nunca a aceitaram – nem mesmo enquanto dóceis – não perderão a oportunidade de colocar uma pá de cal em cima do seu caixão.

Porém, à sociedade sobraria o caos, pois a Justiça do Trabalho, em sua gênese e razão de ser, serve para a pacificação social, atuando como amortecedor dos conflitos sociais. A Justiça do Trabalho é a única que ouve o trabalhador como alguém que acusa, não que é acusado, sendo um oásis de cidadania. A falta – ou desvirtuamento – da Justiça do Trabalho com certeza vai fazer com que os conflitos trabalhistas passem a ser abertos, nos locais de trabalho ou em praça pública, sob os olhares atônitos, faces boquiabertas e sentimento total de impotência tanto de assediadores quanto de assediados.


Rodrigo de Lacerda Carelli Professor Adjunto de Direito e Processo do Trabalho na Faculdade Nacional de Direito/UFRJ;. Mestre em Direito e Sociologia pela UFF e Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ; Procurador do Trabalho no RJ


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